domingo, 25 de agosto de 2013

Tributo ao homem comum

Diário de Coimbra, 25.ago.2013

Inspirado pelo sacrifício duma juventude anónima que combatia, e morria, em nome da liberdade num Mundo dilacerado pela guerra, Aaron Copland compôs, em 1942, “Fanfarra para um Homem Comum”. Mais do que mais uma mera peça musical aquela obra é um símbolo, e uma homenagem, ao cidadão comum, isto é, a todos aqueles com quem nos cruzamos no dia-a-dia, iguais a tantos outros na sua singularidade.

Ao longo da História tem sido nesse Homem Comum que se encontra a força com que se alcançam as pequenas vitórias do quotidiano mas, também, se edificam os grandes projectos comuns e se dá forma às aspirações colectivas. É nesse Homem Comum que, por contraposição a um individualismo absorvente, encontramos, muitas vezes, vivo o sentir do dever, e da solidariedade, que nos une num elo infindável.

Os anos passaram desde o momento no qual, pela primeira vez, a obra Copland ecoou, mas a razão de ser da homenagem surge mais viva que nunca quando nos deparamos com tanta gente vulgar que, no seu quotidiano, consegue encontrar espaço para agir, e pensar, em favor de todos os outros, num imperativo que dimana da sua consciência e tem raiz nos Valores que os anima.

Exemplo vivo de tal abnegação no nosso País, e nestes dias causticados pela repetição do fenómeno dos incêndios estivais, é o esforço abnegado de tantos soldados da paz, Homens Comuns, que dispõem do seu tempo livre e arriscam a sua vida em favor de todos os outros. Ao seu lado o esforço de tantos voluntários que integrados nos mais diversos tipos de instituições de solidariedade consagram o melhor de si para superar as dificuldades que estes tempos de crise criaram para tantos outros. Hoje, como sempre, existiram Homens e Mulheres que, sem qualquer ansia de protagonismo ou desejo de publicidade, dão o melhor de si e, inclusive, apropria Vida como já aconteceu este ano com quatro desses soldados da paz.

Não obstante o avolumar do paradigma da mediocridade democrática é nesta gente comum que vamos encontrar tantos estes exemplos de grandeza e nobreza de carater emancipando-se da imanência vulgar daqueles quem não consegue ultrapassar o apelo hedonista duma sociedade de consumo que a todos pretende assimilar.

A questão não é, assim, da existência capacidade de entrega, e da solidariedade que anima tantos dos nossos concidadão, mas sim, ao invés, do relevo que a nível do espaço mediático é dado a outros comportamentos de sentido contrário, típicos de uma sociedade anómica, e sem rumo, que dominam o espaço público. Como afirma Lipovetsky, ao definir a nossa sociedade como post moralista, agora os objectos e as marcas exibem-se mais do que as injunções morais, a solicitação material sobrepõe-se à obrigação humanitária, as necessidades à virtude, o bem-estar ao Bem. A era moralista exortava aos deveres de cada um para consigo mesmo e para com os outros, nós convidamos ao conforto. A obrigação foi substituída pela sedução e o bem-estar tomou-se Deus e a publicidade o seu profeta. As relações entre os homens são menos sistematicamente representadas, e valorizadas, do que as relações dos homens com as coisas.

Um mero apontamento televisivo ou uma notícia de fim de página é muitas vezes a referência anónima sem relação, ou proporção, com o esforço que tanta gente anónima oferece sem qualquer prémio que não a satisfação do seu sentido do dever. Por contraposição são-nos apresentados como ídolos, e objecto de veneração, os subprodutos duma sociedade de consumo, fruto duma comunicação que não pretende transmitir quaisquer valores ou ideais, mas vender produtos ou pessoas.

A televisão que, no seu início, foi o palco nobre onde os cidadãos mais qualificados davam o seu contributo para a construção de uma sociedade mais qualificada, é hoje, muitas vezes, o circo onde, a pretexto dos cinco minutos de fama, ganham espaço os reality show onde os intervenientes se despem da sua privacidade mais intima e, com um sorriso nos lábios, violam a sua própria dignidade. São muitas vezes o exemplo vivo da degradação a que conduz o inefável desejo de ser conhecido e o único critério é a conquista do horário nobre mesmo que fruto do aviltamento da Pessoa.

É sobre esta contraposição entre duas formas diferentes de viver a relação com os outros que cada um de nós tem a obrigação cívica de se pronunciar e optar.

José Santos Cabral

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