domingo, 10 de novembro de 2013

Doutrina Social da Igreja: uma reflexão sempre em construção

Diário de Coimbra, 10.nov.2013

A Comissão Diocesana Justiça e Paz (em parceria com outras entidades eclesiais e civis, que seria longo citar) vai promover, em data próxima, um debate sobre “a mudança no mundo do trabalho”. A minha tese é que iniciativas como essa são verdadeira construção de Doutrina Social da Igreja.

O Concílio Vaticano II, que, na década de 60, reuniu em Roma mais de 2000 bispos de todo o mundo, durante 4 anos, para discutir a vida da Igreja e a sua relação com o mundo, ignorou o conceito de “doutrina social”. A razão terá sido a de evitar identificar a reflexão da Igreja sobre matérias sociais com uma “terceira via” entre o marxismo e o capitalismo, arrastando a Igreja para um confronto direto e alternativo com os sistemas políticos instaurados. A Igreja recusava-se conscientemente a apresentar ou a apresentar-se como uma alternativa política, assumindo-se antes como inspiração crítica e construtiva por dentro de todos e qualquer um dos “legítimos” sistemas político-económicos dos povos.

A expressão “Doutrina Social” estaria assim muito próxima de cair no esquecimento se João Paulo II não a tivesse re-promovido na carta-encíclica “A solicitude Social da Igreja”. Mas o Papa, que a retoma, marca-lhe também os limites: “A Doutrina Social da Igreja pertence ao campo da teologia, e concretamente da teologia moral” (cf 31). Ou seja, trata-se de uma reflexão, racional, que parte da fé e procura incidir sobre os comportamentos dos crentes nas suas múltiplas atividades sociais, embora seja naturalmente suposto que a Igreja, num espírito de diálogo e partilha, a ofereça ao mundo como um contributo próprio para a construção das realidades terrestres. Ora bem, tal reflexão vai sendo aprofundada e sistematizada (“acurada”) em princípios e valores que constituem um património doutrinal na tradição da Igreja, património esse que hoje se aceita mais ou menos pacificamente como sendo a “Doutrina Social da Igreja”.

Resulta deste enunciado que se trata de uma reflexão sempre em aberto, pelo menos em três dimensões. Desde logo, na capacidade de “acuramento”. Para não irmos mais longe, a encíclica “A caridade na verdade” (2009), de Bento XVI, deixou significativamente desatualizado o Compêndio de Doutrina Social da Igreja (2004). E é previsível que o mesmo aconteça com a Encíclica que se anuncia do Papa Francisco sobre as questões à volta da pobreza. Depois, uma reflexão sempre aberta nos conteúdos, porque novas situações exigem nova reflexão. E, finalmente, uma reflexão sempre aberta às diversidades e especificidades sociogeográficas, porque as situações são muito diferentes de local para local.

A este propósito, já o Vaticano II reconheceu que sobre os grandes problemas sociais apenas podia fazer uma doutrina genérica, confiando aos cristãos, sob a direção dos pastores, “a adaptação dessa doutrina a cada povo e mentalidade” (cf Gaudium et Spes, 41); alguns anos depois (1971), e mais incisivo, Paulo VI escrevia ao cardeal Maurício Roy: “É às comunidades cristãs que cabe analisar, com objetividade, a situação própria do seu país e procurar iluminá-la, com a luz das palavras inalteráveis do Evangelho; a elas cumpre haurir princípios de reflexão, normas para julgar e diretrizes para a ação, na doutrina social da Igreja, tal como ela vem sendo elaborada, no decurso da história”. Ou seja, a Doutrina Social da Igreja é, certamente, aquele corpo doutrinal da tradição eclesial, elaborado sobretudo desde o final do século XIX, mas é também o conjunto das aportações que, à luz daqueles princípios gerais, os cristãos concretizam em princípios, juízos e intervenções adequadas à sua situação cultural e social concreta. Para nós, aqui, em Coimbra…; E por nós!

Carlos Neves

Sem comentários:

Enviar um comentário

Sim, nós podemos!

Diário de Coimbra, 29.dez.2013 Temos a noção de que atravessamos tempos únicos em que os desafios intranquilos duma nova era da Civil...