domingo, 3 de novembro de 2013

A vida para além da morte

Diário de Coimbra, 3.nov.2013

Quem cresce numa família numerosa habitua-se desde muito cedo a conviver com a diversidade e, sobretudo, com posicionamentos completamente distintos sobre questões políticas e religiosas. Este treino continuado permite encarar com respeito o que nos separa e, não raro, provoca discussões longas e acaloradas.

Cá em casa, essa prática – por vezes ruidosa e até cansativa – ocorria preferencialmente aos sábados, durante o almoço familiar que juntava quem estivesse próximo de Coimbra. Infelizmente, depois da morte dos nossos Pais os debates tornaram-se muito mais escassos e breves.

Um dos temas recorrentes no início de novembro era a questão da morte. Tal motivava quase sempre polémicas sobre a utilidade das visitas ao cemitério, o arranjo dos jazigos e das campas e, naturalmente, o controverso conceito de «céu». Imagine-se uma assembleia em que uns encaram os locais de sepultura como um ambiente propício ao encontro com os familiares e amigos entretanto falecidos e ao reforço dos laços que a morte não conseguiu interromper, enquanto outros, pela inversa, os consideram deprimentes e sem sentido.

Todavia, embora muito raramente surgissem consensos, todos ficávamos perturbados quando um dos mais pequenos nos interrompia, possivelmente com saudades de um dos avós, e perguntava: «Porque é que as pessoas vão para o céu? Mas onde é o céu? E como é o céu?».

Quando fui interpelada pela primeira vez nestes termos fiquei francamente atrapalhada e sem saber o que responder. Felizmente, fui salva pela sensatez do pequeno inquiridor: «Oh! A mãe também não sabe, a mãe nunca foi ao céu». Suspirei de alívio. No entanto, ainda hoje tenho dificuldade em explicar a uma criança que, para nós cristãos, a morte não é o fim da vida, antes o começo de uma outra, a que chamamos «vida eterna». E que, para compreendermos este conceito, que procura dar nome a uma realidade desconhecida, temos de nos abstrair da temporalidade de que somos prisioneiros, e de alguma forma conjeturar uma vida de «pura felicidade», na qual todas as limitações e fragilidades humanas são superadas.

Todavia, se por um lado é verdade que nos confrontamos com a morte quase todos os dias, por outro é natural que não desejemos morrer e, sobretudo, que aceitemos com muita dificuldade a morte de quem mais gostamos. A nossa Mãe dizia frequentemente que sentia a morte do marido como uma amputação, como se a tivessem privado de parte de si. Por isso detestava que lhe perguntassem se já estava conformada.

Também sinto que não me conformei com a perda da presença física dos meus Pais, apesar de os saber presentes no dia-a-dia: na forma como eu, os meus irmãos, filhos e sobrinhos somos e vivemos quotidianamente. Embora nos primeiros tempos essa recordação permanente me entristecesse profundamente, hoje em dia é muito mais serena e reconfortante.

É por isso que, do meu ponto de vista, a melhor maneira de encarar a morte e de testemunharmos esta esperança numa nova vida – permanecendo firmes nos bens que esperamos e na certeza de realidades que não vemos – passa por vivermos sem desperdiçar o tempo de que dispomos, não o gastando a ter medo ou a odiar. Porque, como escrevia Pablo Neruda, «morre lentamente quem passa os dias a queixar-se da má sorte ou da chuva incessante, desistindo de um projeto antes de o iniciar …». Ao desafiar-nos, assim, a evitar «a morte em doses suaves», o poeta convida-nos a ter sempre presente que «estar vivo exige um esforço muito maior do que o simples ato de respirar.»

Estejamos vivos, então!

Teresa Pedroso de Lima

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