domingo, 7 de abril de 2013

Do direito à verdade


Diário de Coimbra, 7.abr.2013

Um dos principais temas na filosofia política ocidental é o exercício do Poder e, nomeadamente, a forma de o manter e de o controlar. Cada um destes pontos interpela diferentes actores pois que se a conservação do Poder interessa a quem o detém, já o seu controle é tarefa de todos nós.

Desde há cerca de duzentos anos que, impulsionada pelos ventos da história e alimentada pelos pensadores, mas, essencialmente, moldada por aqueles que lutavam pelos seus ideais, se foi desenvolvendo a ideia de que a “democracia representativa” era a forma de governo que melhor permitiria que os cidadãos exercessem o Poder, nomeadamente através dos seus representantes eleitos. Num dos discursos mais importantes da História (Gettysburg- 19/11/1863) Lincoln sintetizou magistralmente a raiz de tal relação ao afirmar “que esta Nação, com a graça de Deus, renasça na liberdade, e que o governo do povo, pelo povo e para o povo jamais desapareça da face da terra”.

Com todas as suas limitações o ideal desenhado por Rousseau, Hobes e Lock foi bem-sucedido ao longo dos séculos, impondo-se se aos totalitarismos, e a conjugação de governos representativos e de economias de mercado construiu sociedades abertas e plurais, respeitadoras da liberdade e do bem-estar. Simultaneamente, procurou-se controlar o exercício daquele Poder através de instrumentos que permitissem inviabilizar qualquer deriva que pretendesse colocar em causa a representatividade do exercício em nome do Povo.

Nos dias de hoje aparecem sinais duma erosão que enfraquece a base da democracia, atingindo-a precisamente na sua essência, ou seja, naquilo que se refere à representatividade dos governos perante as exigências dos governados. Na verdade, com o decorrer do tempo, grande parte dos governos representativos foi capturada por dois poderosos actores: os partidos políticos, que converteram os sistemas políticos em partidocracias governadas por uma classe política que, muitas vezes, não presta contas nem é transparente, e os mercados, que sujeitaram o poder político aos seus interesses particulares, convertendo-se numa esfera de poder autónoma.

O interesse público, a decantada res publica, está, demasiadas vezes, relegada para um segundo plano como princípio orientador das políticas públicas e foi subvertida a prestação sistemática de contas como mecanismo de controlo nas mãos dos cidadãos.

Na maior parte das democracias ocidentais é hoje visível a crise de grande parte dos mecanismos que possibilitavam a visibilidade, e o controlo, de todos aqueles que exercem o poder, criando uma ruptura entre representantes e representados, colocando em causa a qualidade da democracia que os seus cidadãos merecem e aspiram.

Em tempos de prosperidade, quando os recursos pareciam inesgotáveis, a distribuição da riqueza, e o colmatar das assimetrias, eram tarefas resolúveis e a tensão entre eficácia e representatividade resolvia-se liminarmente a favor da eficácia em detrimento da representatividade. Todavia, quando os tempos de penúria chegaram, e a crise económica irrompeu, ficou visível a incapacidade dos sistemas políticos de gerirem eficazmente a economia a que se acrescentou não só a sua crise de representatividade mas, também, a submissão ao poder dos mercados.

A democracia representativa entrará numa profunda crise se não recentrar a sua legitimidade na relação com os cidadãos em nome de quem é exercido o Poder e um dos elos fundamentais de tal relação é o Direito à Verdade. Para quem é convocado diariamente a suportar o custo de decisões iniquas, tomadas á revelia do Bem Comum, o mínimo que é exigível é a explicação cabal de como foi possível chegar até aqui e da responsabilidade de quem nos fez chegar até aqui.

Os exemplos desta exigência de cidadania começam a multiplicar-se na Europa e vão desde o julgamento do antigo primeiro ministro da Islândia Geir H.Haarde até ao referendo na Suíça que, fruto da iniciativa popular, limitou os ordenados excessivos dos altos executivos, passando pela condenação em quatro anos de prisão de Ernst Strasser-antigo Ministro do interior austríaco, e em oito anos de prisão de Akis Tsohatzopulos-antigo Ministro da Defesa grego e alto responsável do PASOK.

São meros sinais mas, a menos que nos consideremos todos derrotados, é hora, agora mais do que nunca, de ousar experimentar no quadro da democracia.

José Santos Cabral

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