domingo, 31 de março de 2013

Páscoa - A história acontece antes da fé


Diário de Coimbra, 31.mar.2013

Nesta manhã, o tema Páscoa é incontornável, e pode ter mil abordagens. A mais difícil de todas, curiosamente, é a crença em que se fundamenta: a de uma intervenção extra-ordinária de Deus que salva o seu povo da escravidão (para os judeus) e que salva o seu próprio filho da morte (para os cristãos). Filhos intelectuais de Descartes e Newton, de quem aliás somos também eternos devedores, tendemos simplesmente a negar qualquer credibilidade ao extra-ordinário.

Mas a Páscoa, exatamente nessas duas crenças extra-ordinárias de libertação/ressurreição que lhe estão associadas, remete-nos incondicionalmente para a História! Sim, para o ordinário onde a vida acontece. Aquele povo semita, que transforma a antiga festa das primícias dos campos e dos gados em festa de libertação, era escravo; e se alguma razão preside à sua Páscoa, é o sofrimento e as lágrimas da sua história deplorável. E, na Páscoa cristã, o ressuscitado é um simples galileu que outro poder não usou na sua vida senão o da palavra reivindicativa da libertação do homem, a que associou uma coerência de vida inatacável. A afirmação pode parecer estranha aos que estão pouco familiarizados com a sua história, e mais ainda aos que estão mal familiarizados. Mas é verdadeira: morre porque reclama, em nome de Deus, que cada homem e mulher possa ser totalmente homem e mulher, livre de todos os fados, de todos os arbítrios, de todas as opressões, e de modo particular daquela opressão religiosa que desumaniza o homem diante de Deus e diante de si mesmo.

A História – quer na perspetiva político-social, quer na perspetiva pessoal-existencial – continua aí, com suas glórias e seus dramas. [E os dramas não são poucos: gestão política ineficiente, paraísos fiscais, pobreza, desemprego, toxicodependência, violência familiar, suicídio…]. O nosso anelo – por nós, pelos nossos filhos, por todos os homens e mulheres apercebidos como irmãos e irmãs em fraternidade universal – é ajudar a passar (= páscoa) as situações de drama para situações de glória. Fazer páscoa é uma tarefa ordinária e sempre inacabada, comum a crentes e não crentes: a história acontece antes da fé, como insinua insistentemente um dos mais importantes documentos do Vaticano II, a Gaudium et Spes.

Nós, os crentes, a esta cooperação comum e primordial com os não crentes na transformação gloriosa da humanidade, juntamos a convicção de que nenhuma lágrima, nenhuma derrota, nenhuma morte será em vão, convicção fundamentada na fé de que Deus interveio poderosamente em favor daquele Jesus Nazareno que chorou, foi derrotado e foi morto pelo simples motivo de ter dado toda a sua vida à humanização das pessoas e da sociedade. Daqui, é verdade, tiramos outras ilações de fé que hoje celebramos em alegria indiscritível, traduzida em duas simples palavras: “Ressuscitou! Aleluia! Aleluia!”; mas essas, não temos que as impor a ninguém. Boa Páscoa.

Carlos Neves

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