domingo, 24 de março de 2013

Podemos hoje ser felizes?


Diário de Coimbra, 24.Mar.2013


Todo o ser humano aspira ardentemente a ser feliz. Mas para o ser não basta querer. Especialmente agora que vivemos uma época tão conturbada e cheia de incertezas. Além disso cada época, cada sociedade, cada pessoa têm o seu próprio conceito de felicidade.

Segundo os jornais, um estudo recente coloca os portugueses no último lugar de um ranking europeu de felicidade (é possível medir a felicidade?). Apesar de alguns psicólogos dizerem que temos tendência a encontrar a felicidade em “pequenas” coisas como os amigos e a família, não poderá deixar de se ter em conta o consumismo, já que, penso eu, uma grande parte de nós coloca nele a sua felicidade, uma felicidade ilusória, pois o consumismo estimula duas atitudes contrárias à própria felicidade: 1) uma insatisfação radical, como se a felicidade dependesse daquilo que não temos; claro, que convém recordar que a felicidade necessita de condições nos vários âmbitos da vida sem as quais não é possível viver com um mínimo de dignidade; 2) “explorando directamente os seus (da pessoa) instintos e prescindindo, de diversos modos, da sua realidade pessoal consciente e livre, podem-se criar hábitos de consumo e estilos de vida objectivamente ilícitos, e frequentemente prejudiciais à sua saúde física e espiritual” (J. Paulo II, Centesimus annus, 36).

Assim o consumismo criou ou potenciou um estilo de vida muito típico, que não só é impróprio, como se vê, mas também insustentável – de quantos planetas precisaríamos para que todos os habitantes da terra tivessem o nível dos países do Norte? É, pois, urgente repensar este estilo de vida que aliena uns por excesso e esmaga outros por defeito, através de uma análise crítica do modo como tem vigorado nas famílias e na sociedade e como foi estimulado pelas instituições de crédito e por manobras de “markting”.

Qualquer estilo de vida só poderá proporcionar felicidade se assentar em valores, como sejam: acreditar que cada ser humano vale por si e não pelo que tem; pôr em prática a vocação da pessoa como ser-para-os-outros, sempre aberto à amizade e à solidariedade; sobrepor o espírito cívico em prol da comunidade a qualquer interesse egoísta; exercitar a gratuidade não exigindo pagamento por qualquer coisa que se faça; ser construtor da fraternidade, em vez de se tornar “lobo do homem”.

A primeira responsabilidade nesta mudança de paradigma é das comunidades culturais, das escolas e antes de mais dos pais: “embora no meio das dificuldades da obra educativa, devem, com confiança e coragem, formar os filhos para os valores essenciais da vida humana”. E o primeiro desses valores é “uma justa liberdade frente aos bens materiais, adoptando um estilo de vida simples e austero, convencidos de que ‘o homem vale mais pelo que é do que pelo que tem’”. (J. Paulo II, Familiaris Consortio, 37)

Estes valores não nascem por decreto, mas de uma reforma não apenas programática, de que tanto se fala, mas de uma reforma paradigmática, sistémica, envolvendo todos cidadãos e todos os aspectos da vida. Qualquer coisa como uma “insurreição das consciências” geradora das forças adequadas para atacar os desafios que se nos colocam. Por outras palavras, precisamos de uma política de bem-viver e não apenas de bem-estar: “O bem-viver parece sinónimo do bem-estar, mas não é. Na nossa civilização este é sinal de conforto, posse de objectos e de bens, não tem a ver com o bem-viver, não tem a ver com a realização pessoal, as relações amorosas, a amizade, o sentido de comunidade. O bem-viver, hoje em dia, deve incluir, sim, o bem-estar material, mas deve ser o contrário de uma concepção quantitativa que pensa conseguir bem-estar à custa do “sempre mais”; deve significar qualidade de vida, não quantidade de bens, e englobar, antes de mais, o bem-estar afectivo, psíquico e moral” (S. Hessel e E. Morin). Isto implica uma política do bem-viver implementado pelo que se poderia chamar “vontade de viver”, um acordar que nos arranque de uma apatia e uma resignação mortais. É que “a vontade de viver alimenta o bem-viver e o bem-viver alimenta a vontade de viver. Ambos, juntos, abrem o caminho da esperança” e da felicidade.

Trata-se, no fundo, de aprender a cuidar uns dos outros. Como pediu o papa Francisco: “Quero pedir que todos nós caminhemos juntos, cuidemos uns dos outros. Cuidem-se, cuidem da vida. Cuidem da família, cuidem da natureza, cuidem das crianças, cuidem dos idosos. Que não exista ódio, que não exista briga. Deixem a inveja de lado, não prejudiquem ninguém. Dialoguem. Vivam o desejo de cuidar uns dos outros”.
 
José Dias da Silva

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