domingo, 4 de março de 2012


2012-mar.-04
Ref.ª: 2.6
A vida é mais do que ter
Eu sei que o consumo é uma variável das curvas de crescimento macroeconómico. E, todavia, podem as contas dar certo e a lógica que lhes preside estar errada; ou estar errada a justa proporção dos fatores; ou simplesmente errada a convicção de que as contas traduzem a vida.
O consumismo, tal como o terão expressado Brooks Stevens e Victor Lebow nos anos 50, e tal como de facto acontece nas sociedades ocidentais, traduz-se em última instância por transformar recursos em lixo! Como os recursos são limitados e o lixo má qualidade de vida, demos as voltas que dermos à questão, esta lógica está errada.
Por outro lado, se uma economia depende exageradamente de um só dos seus fatores, como o consumo, isso faz-se em desequilíbrio de outros, como a produção, os juros ou a dívida. E quando se entra em desequilíbrio crescente, nalgum momento do percurso vamos cair! Se só o setor distributivo das grandes superfícies reclama 9% do PIB nacional, talvez que o desequilíbrio em Portugal esteja a ser grande.
Depois, a vida é mais do que ter. A afirmação parece culturalmente anacrónica, porque vivemos imersos numa “inversão da hierarquia dos valores” (João Paulo II) entre o “ser” e o “ter” e, portanto, arrepiamo-nos até à medula à mera hipótese de termos menos: parece que o chão nos foge debaixo dos pés; que a hipótese de felicidade se esvai; que seremos menos se tivermos menos. Evidentemente, é bom e legítimo o anelo permanente por uma vida materialmente melhor, consumindo bens e serviços postos em maior quantidade e melhor qualidade à disposição do homem pela técnica, mas desde que tal “enriquecimento” material respeite aquela “justa hierarquia” que põe os valores da verdade, da justiça, da fraternidade, da solidariedade, da ecologia e da responsabilidade para com as gerações vindouras acima de si mesmo. Neste sentido, as nossas opções individuais de consumo têm uma dimensão social e ética irrecusável. Quando consumimos, estamos sempre a modelar a economia, a cultura, a vida e o mundo.
Não é opinião descartável; é drama cruento, no qual as nossas opções contam: para que uns consumam barato, outros são explorados; para que uns poucos tenham muito, muitos não têm nada. E, como observa ainda João Paulo II, nem quem explora chega a ser verdadeiramente homem, porque alienado ao “culto do ter”, nem quem é explorado e espoliado pode ser verdadeiramente homem, porque privado do consumo dos bens mínimos necessários ao desenvolvimento da sua dignidade pessoal, social e relacional.

Carlos Neves (membro da Comissão Diocesana Justiça e Paz)
(Publicado no Diário de Coimbra de 2012-março-4)


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