domingo, 12 de agosto de 2012

2012-ago.-12
Ref.ª: 2.6

O trabalho como mera mercadoria
Para assegurar a prestação de cuidados de saúde da responsabilidade de serviços integrados no Serviço Nacional de Saúde (SNS), o Ministério da Saúde consultou empresas que lhe fornecessem as horas de trabalho de médicos e de enfermeiros consideradas necessárias. As empresas sabiam que seria escolhida a que oferecesse o preço mais baixo da hora de trabalho. O resultado destas operações, quando veio a público, suscitou indignadas manifestações de repúdio, por se considerar que o valor da hora de trabalho era muito inferior ao que seria admissível para os profissionais em causa.
Sem contestar a legitimidade e a justeza destas indignações, vale a pena assinalar que em Portugal há mais, muito mais, profissionais vítimas deste tipo de desvalorização do seu trabalho (advogados, arquitetos, assistentes sociais, biólogos, engenheiros, físicos, historiadores, psicólogos, etc., etc., onde acabará a lista?). Alguns destes profissionais vão conseguindo sobreviver à custa de bolsas de estudo para doutoramento e pós-doutoramento, outros emigram, outros trabalham como caixas em supermercados, outros nem trabalho arranjam e sobrevivem sob a proteção serôdia dos pais ou mesmo dos avós…
Alguns conseguem trabalho mas, considerados, por mera ficção, como profissionais independentes, são obrigados a emitir “recibos verdes”, agora eletrónicos, para receberem o seu salário e a ter de pagar a totalidade das contribuições para a segurança social que os trata como empresas. Deste modo, as entidades empregadoras transferem para estes trabalhadores o pagamento da parte da contribuição para a segurança social que lhes caberia se celebrassem com eles um contrato de trabalho.
É espantoso, em primeiro lugar, ser o próprio Estado, pela mão do Ministro da Saúde, a tomar a iniciativa de comprar horas de trabalho em vez de contratar trabalhadores, com a agravante de estarem envolvidas prestações de cuidados de saúde, que, pela sua natureza, implicam o estabelecimento de uma relação de confiança entre médico ou enfermeiro e doente.
Por outro lado, as vozes de indignação das Ordens Profissionais (Advogados, Arquitetos, Engenheiros, Médicos) limitaram-se a constatar a situação e a responsabilizar o Governo, mas esqueceram-se de que, em grande parte dos casos, são os próprios gabinetes de advocacia, arquitetura, engenharia, geridos por membros das próprias corporações, que “contratam” assim muitos daqueles jovens profissionais, tal como se esqueceram de referir que certos advogados, arquitetos, engenheiros, médicos auferem remunerações exorbitantes.
Parece pois que “o perigo de tratar o trabalho como uma «mercadoria sui generis» ou como uma «força» anónima necessária para a produçãocontinua a existir ainda nos nossos dias” tal como denunciou João Paulo II, em 1981, no n.º 7 da encíclica “Laborem Exercens”.
Carlos Paiva
Membro da Comissão Diocesana Justiça e Paz
(Publicado no Diário de Coimbra de 2012-agosto-12)



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