domingo, 17 de fevereiro de 2013

Dos tribunais e da crise



Diário de Coimbra, 17.fev.2013

Neste tempo de crise somos convocados para, com o nosso esforço, colmatar erros passados. A dimensão de tal exigência repercute-se directamente no esbater de uma forma de vida que se tinha por adquirida e na afronta feita às gerações futuras, hipotecadas pelo presente.

Fomos conduzidos até aqui, não por culpa própria, como tantas vezes se pretende, mas, essencialmente, em virtude de decisões políticas incorrectas e de actos de natureza criminal. As primeiras geram a responsabilidade política cuja sanção se exerce no voto com que cada um de nós avaliza, ou não, o exercício do poder politico que é feito em nosso nome. A segunda ordem de responsabilidades, de natureza criminal, tem lugar nos tribunais e decorre da legitimidade constitucional que a estes assiste para julgar todos aqueles a quem é imputada a violação dos bens jurídicos nucleares na vida em comunidade.

Na forma eficiente como os tribunais respondam aos desafios lançados por este tipo de criminalidade constrói-se, também, a sua legitimidade. Na verdade, quando se fala sobre o Poder Judicial, ou sobre a crise do sistema judicial, está subjacente a questão da legitimidade dos Tribunais ou da existência de um “deficit” de legitimação democrática da jurisdição. Aos Tribunais compete o desempenho de uma função de garantia, da efectividade dos direitos fundamentais e, em geral, da observância da legalidade e a sua legitimidade adquire-se (ou não) pelo correcto exercício da função dentro dos parâmetros constitucionais e legais. Falamos, assim, de uma legitimidade pelo procedimento.

Dito por outra forma e de modo mais seco:- para todos aqueles a quem hoje são pedidos sacrifícios, e aos jovens de amanhã que irão arcar com o ónus do presente, é uma questão de Justiça que os Tribunais actuem de forma eficaz no julgamento daqueles que, deliberadamente, se locupletaram á custa de todos os outros.

No que respeita não nos descansam as noticias que chegam, indo desde o arquivamento da investigação por corrupção numa Câmara, em processo pendente há mais de onze anos, até ao prolongar do julgamento do processo com a audição de doze testemunhas em vinte e quatro meses e com trezentas testemunhas por inquirir, passando pelo processo com dezenas de recursos dilatórios para evitar o cumprimento da pena de prisão.

Esquecemo-nos demasiadas vezes que a eficiência da Justiça penal é um valor nuclear no Estado de Direito, fundamentando a confiança dos cidadãos no funcionamento do regime democrático. Infelizmente as últimas décadas da nossa história judiciária não têm sido particularmente felizes no combate a uma criminalidade que corrói os alicerces do mesmo Estado e, olhando para o destino de um vasto elenco de processos, é todo um mar de dúvidas que nos invade relativamente à eficácia do sistema.

É certo que se constata a realização de dezenas de conferências, debates e colóquios sobre os mais decantados temas ligados á criminalidade económica, nomeadamente sobre a corrupção, a que acrescem simbólicas declarações do poder político e, até, de responsáveis judiciais. Porém, na prática pouco, ou nada, mudou num limbo em que as prescrições combinam com o penoso arrastar processual.

Em lugar da linearidade conducente a um concreto apuramento de responsabilidades é todo um jogo circular, entediante e confuso, num rendilhado processual em cenário de “sombras chinesas” no qual o que parece tem mais força do que aquilo que realmente é. O resultado é uma desconfiança latente na opinião pública e visível no lugar ocupado pelo país nos índices de Percepção da Corrupção e nos relatórios de organizações internacionais.

Para que a responsabilização por este tipo de criminalidade apresente melhores resultados é necessário uma outra visão estratégica, e de Estado, que tenha a noção precisa da importância que assume o sucesso do combate á corrupção, e seus afins, na sanidade do regime democrático. Não é possível, em simultâneo, pedir mais sacrifícios a cada cidadão para pagar erros de terceiros e omitir qualquer notícia sobre a forma como despareceram milhares de milhões de Euros que, agora, aquele mesmo cidadão é chamado a pagar.

Um dos caminhos práticos para atingir tal finalidade passa pela aplicação de regras básicas de gestão como é a criação de uma única entidade que centralize a tarefa de combate á criminalidade económica e na qual se encontrem os melhores Magistrados; os melhores Investigadores e os melhores Peritos, dotados dos adequados meios a nível legal e operacional. Acresce a necessidade de tribunais especializados onde estejam Juízes com experiência e conhecimentos numa área de tão grande exigência, munidos de Códigos aptos a enfrentar os desafios de uma criminalidade do século XXI.

O desafio que o poder político enfrenta neste momento é de demonstrar perante nós, cidadãos, que o combate á corrupção não é uma mera figura de retórica, mas sim uma exigência ética e uma questão de sobrevivência do regime democrático. 
 
José Santos Cabral

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