domingo, 1 de dezembro de 2013

Reconhecer o mal

Diário de Coimbra, 1.dez.2013

As pessoas conscientes, durante a sua caminhada de crescimento na vida, também aprendem a especificar o mal que está nelas próprias e captam com facilidade o mal que as rodeia. Porque são francas consigo próprias, porque já estão habituadas a lutar contra os seus pontos fracos.

Na realidade, o mal não é uma abstração, uma imagem ou um símbolo. Pertence, de facto, a pessoas de carne e osso. O mal está dentro das próprias pessoas. O mal não é objetivo, mas subjetivo. Se o objetivássemos, se o tornássemos absoluto, ele iria dominar-nos e paralisar-nos, para sempre. Ficaríamos empobrecidos e ele seria o vencedor, e nós incapazes de nos libertarmos dele. Por outro lado, os seres humanos são criaturas inteligentes dotadas de senso, de transcendência. Podem e devem sondar em profundidade a sua própria mente, isolar o mal e eliminá-lo.

“Quando o homem olha para dentro do próprio coração, descobre-se também inclinado para o mal e imerso em múltiplos males que não podem provir do seu Criador que é bom.… O homem encontra-se, pois, dividido em si mesmo. E assim, toda a vida humana apresenta-se como uma luta dramática entre o bem e o mal, entre a luz e as trevas”. (GS 13).

A tomada de consciência é uma arma que serve para compreender o mal que habita o coração humano de todos nós, seres humanos. Com o seu poder destruidor, é a força da qual nos servimos, para não nos deixarmos aterrorizar pelo mal que sentimos dentro de nós, mas que serve para o combater, para o confundir, para o destruir, para lhe darmos sentido.

Infelizmente, a nossa sociedade secularizada não dá importância ao mal, visto estar já atacada por ele até aos pontos mais vitais, aceitando-o como se ele não existisse, como se fosse apenas um símbolo, uma representação, uma imagem. Ou então, em certos casos, o mal é visto e vivido como uma identidade à qual não se pode fugir É quase como se o espírito fosse demasiado fraco e a carne forte e, dessa forma, a vontade humana, embora conhecendo o bem, ficasse incapaz de o atingir, de o realizar.

O mal brota da imagem errada que temos de nós próprios. O mal é a perceção deformada daquilo que somos; da realidade. O mal é apercebermo-nos apenas daquilo que está errado, da falta de sentido da vida, e não da serenidade e do bom senso que ela contém. As raízes do mal estendem-se de tal maneira até ao mais profundo do nosso ser, que só uma corajosa análise das nossas fraquezas, dos nossos aspetos mais obscuros e negativos, as pode desmascarar. Por isso, o mal só pode ser derrotado através da conversão e do empenhamento moral. O mal é não entrar em contato com a nossa realidade interior; é não termos a perceção e o conhecimento daquilo que somos verdadeiramente; é não desenvolver a consciência e as nossas faculdades em toda a sua infinita extensão e intensidade, tanto a nível corporal, como psíquico ou espiritual. O mal não é mais que uma deformação da maneira de viver aquilo que Deus nos deu.

Quase podemos dizer que a origem de todos os males está em não sabermos escutarmo-nos a nós próprios, aos outros e ao mundo. Realmente, assim sendo, não vivemos. Pensamos que vivemos. Mas apenas vivemos pedaços da realidade. E de entre eles, aqueles que são produto das nossas fantasias, dos nossos medos.

A verdadeira capacidade de escutar é estar-se completamente disponível para nós mesmos, para os outros, para o universo, para assim os podermos conhecer e compreender, para sermos capazes de dar sentido e significado a tudo quanto vivemos, apenas por aquilo que é. Para conseguir escutar é necessário entrar em comunhão consigo próprio e com os outros, com toda a realidade. Procedendo desta forma, a realidade e a vida tornam-se fontes inesgotáveis de mensagens, de bom senso e de pontos de referência. O afastamento da realidade provoca a perturbação, a escravidão, a ausência de vida. É necessário viver e entrar dentro da realidade!

É preciso desenvolver a sensibilidade. Nesta sociedade, desprovida de sentimentos, os que não têm sensibilidade consideram-se superiores aos outros. As pessoas insensíveis não são amigas, tentam dominar, controlar ou aniquilar os outros. Simplesmente não vivem como pessoas, não sentem simpatia por ninguém. Não estão vivas, não fazem opções, não tomam iniciativas, não comunicam, não sentem, isolam-se entregues aos seus fantasmas.

A maior parte das pessoas fala, mas não comunica. Na realidade, acaba por não estar disponível para os outros. Fala por interesse, para desabafar, para dominar e controlar. Para essas pessoas, abrir-se com alguém significa dar parte de fraco, ser ingénuo. Abrir-se com os outros não está na moda. Trata-se com o outro como se fosse um objeto, não se entra na sua intimidade. Quem assim procede, perde a capacidade de se identificar com os outros, já não consegue ver o mundo com os olhos dos outros, já não consegue sofrer com os outros, esquece a linguagem dos mais fracos, a linguagem da simpatia, e tem apenas uma única visão das coisas, que é a sua. E este caminho leva a que tudo se torne falso e sem verdade na vida.

Há que ter a capacidade de mudar. A vida e a capacidade de crescer, exigem uma mudança constante e uma grande adaptação do nosso íntimo e também daquilo que se encontra à nossa volta. A vida, no fundo, é uma longa sucessão de mudanças. Acontece em todas as idades, estamos em contínuo crescimento e sempre em mudança. Nunca se morre, se estivermos sempre disponíveis para nos modificarmos, se formos capazes de nos sentirmos abertos, de nos renovarmos em direção a objetivos e dimensões dos mais diversos, e espiritualmente cada vez mais importantes. Por outro lado, quem não aceita mudar, é como se já estivesse morto.

Alberto Lopes Gil

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