domingo, 16 de setembro de 2012

2012-set.16
Ref.ª: 2.6
Traficantes das desgraças humanas
Numa rápida visita à aldeia da infância reencontrei-me com uma grande e velha figueira; sobretudo uma generosa figueira, tal a abundância dos frutos! Nessa contemplação, invadiu-me insistentemente a evocação de uma das mais admiráveis homilias de toda a História da Igreja, de S. Basílio Magno (séc. IV): “imita a terra, ó homem. À sua semelhança produz frutos, mas não te reveles menos bom do que uma coisa sem vida. Pois certamente não é para o seu próprio proveito que ela produz frutos, mas para o teu serviço”.  E pensei em quanto a partilha gratuita de bens, tão generosa como a da figueira, pode ajudar a sair da crise! De duas maneiras: no imediato, minorando as necessidades das pessoas que foram atiradas para graves situações de pobreza; a mais longo tempo, criando uma cultura nova, de partilha fraterna e liberalidade pessoal e coletiva no uso dos bens materiais e imateriais de que as pessoas e as sociedades dispõem. Nem será por acaso que é precisamente depois de rebentar a crise atual que a Doutrina Social da Igreja, sem descurar a luta pela justiça, releva para primeiro plano, como valor fundamental da vida económica e social, à escala global, a… gratuidade: “o desenvolvimento económico, social e político precisa, se quiser ser autenticamente humano, de dar espaço ao princípio da gratuidade como expressão de fraternidade”. (Bento XVI). Aliás, no próprio governo dos Estados surgem sinais de forte confluência com este princípio, de que é exemplo a recente celebração de um Ano Europeu do Voluntariado (2011).
Sem descurar a luta pela justiça! Aliás, já Basílio de Cesareia, na mesma homilia, não se limitava a exortar à partilha de bens; denunciava também, com toda a energia, o egoísmo dos que acumulam riquezas, aumentando assim a miséria dos pobres. Nalguns passos parece mesmo entrar pelas causas da nossa crise adentro: “O que não fazes pelo ouro!?  O trigo torna-se ouro para ti, o vinho em ouro se converte, mudam-se as lãs em ouro. Toda a mercadoria, todo o pensamento te levam ao ouro. O próprio ouro se engendra a si mesmo, multiplicado em muito maior quantidade pelos juros”. E noutro passo: “Não imponhas maior preço às coisas necessárias. Não suportes a carestia do trigo, sem abrires o celeiro. Fome por causa do ouro é inadmissível, bem como a indigência de muitos causada por tua abundância. Não te tornes um traficante das desgraças humanas”. E quase a terminar: “que mal faço, diz o rico, guardando o que é meu? De que modo, diz-me, é teu? Donde o tiraste, tomando-o para teu sustento? Não saíste nu do ventre? De novo não voltarás nu para a terra? Donde vêm só para ti as coisas terrenas?”
Perdoe-se-me a proliferação de citações, mas não resisti a partilhá-las aqui convosco. Em parte, devo confessar, pelo orgulho que sinto em de algum modo me considerar um remoto descendente desta plêiade de pensadores!; noutra parte, porque cada dia me apercebo mais mergulhado numa sociedade onde, a par de tanta generosidade, sobretudo de gente simples e pobre,  proliferam e se multiplicam os  “traficantes das desgraças humanas”.
Carlos Neves
Membro da Comissão Diocesana Justiça e Paz
(Publicado no Diário de Coimbra de 2012-set.-16)

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