domingo, 26 de maio de 2013

Falando de Justiça


Diário de Coimbra, 26.mai.2013

Suscitam-nos um misto de perplexidade, e preocupação, os indicadores de opinião que reflectem uma opinião negativa dos cidadãos sobre o Sistema de Justiça, a qual, algumas vezes, transcende a ideia de ineficiência para cair na suspeição sobre os seus próprios agentes. A afirmação de um Estado de Direito e a estabilidade do sistema democrático têm a marca genética de uma Justiça credível.

Vários factores convergiram para a actual situação e certamente que o menor não será a forma como o poder político geriu o tempo, e a necessidade, de reforma do sistema judiciário, mantendo-se estático e passivo perante uma profunda transformação social e económica. Com efeito as debilidades estruturais no sistema de Justiça existentes são o resultado de uma indiferença de dezenas de anos nos quais, a um mundo em transformação acelerada, se contrapôs o vazio das políticas do sector. Em lugar da reflexão, e ponderação, capazes de originar as reformas necessárias, privilegiaram-se as alterações pontuais, ao sabor da voragem do tempo, mudando algo para que tudo ficasse na mesma.

Na Justiça, como noutras áreas, esteve maioritariamente ausente uma visão de Estado, gerada na boa liderança, susceptível de corporizar um processo de mudança de estruturas e de mobilização das consciências.

Àquelas debilidades estruturais do sistema de Justiça acresce a incompreensão do comum dos cidadãos expostos a uma exposição mediática replicada, e ampliada, numa repetição monocórdica de notícias, e opiniões, em relação á qual inexiste a capacidade crítica para distinguir entre a realidade e aquilo que é um mero espaço lúdico. A justiça transforma-se num circo mediático em que a opinião pública é condicionada, muitas vezes de uma forma perfeitamente planeada, num sentido pré-determinado. O tempo da justiça passa a ser o tempo dos noticiários em que, muitas vezes, alguns princípios fundamentais são, olimpicamente, postergados.
Esquecemo-nos, de uma forma injusta, que por detrás de cada anomalia do sistema judicial, anunciada em termos amplificados na comunicação social, existe uma pluralidade de locais onde a regra é as “coisas funcionarem” e, também, a existência duma multidão anónima de Magistrados, Advogados e Funcionários que, quotidianamente, dão o seu melhor nas respectivas funções. A generalização acrítica, tomando como regra aquilo que é excepção, quando não a própria deturpação voluntária, tornaram-se um hábito no discurso mediático e politicamente correcto, incluindo para alguns que, pela posição que ocupam, tinham a obrigação de informar.

Qualquer reforma do sistema de justiça convoca mudanças sociais e económicas à margem dos quais o mesmo se tem mantido alheio. Na verdade, ao longo das últimas décadas, foi evidente o desajustamento histórico entre tais transformações á escala nacional, e global, e a “governance” dum sistema judiciário que se encontra caduco. As reformas legislativas foram, quase exclusivamente, o fruto de visões voluntaristas de recém-chegados á área do poder político, crentes de serem os portadores das soluções miríficas, e, muitas vezes, dando voz aos interesses de grupos bem definidos em menosprezo daquilo que o interesse comum aconselhava.

Os estrangulamentos do sistema em termos de eficiência permaneceram inalterados e continua a inexistir uma eficiente prestação de contas (a denominada accountability recorrendo ao anglicismo).

Numa perspectiva de cultura organizacional tudo se resume á compreensão de que na área da Justiça, como em qualquer outra, a razão de ser da actuação dos seus agentes é o princípio do bem comum e que de tal princípio irradia todo o resto. Para os Juízes tal pressuposto reflecte-se, ainda, num outro plano em que a sua função como titulares de órgãos de soberania, com o ónus que tal confere perante a comunidade, tem implícito o respeito do princípio da independência mas, também, a exigência de excelência de comportamentos, sem margem para quaisquer contemporizações.

José Santos Cabral

    domingo, 19 de maio de 2013

    Viver da Esperança

    Diário de Coimbra, 19.mai.2013

    Então, decide-se hoje o “título”. Enquanto não chega a hora dos jogos, os mais clubistas vivem uma ansiosa espera, na expetativa do que acontecerá, sem disfarçarem um desejo doido de que as coisas venham a correr a favor das suas cores. Entretanto, a utopia de vencer nas quatro frentes esfumou-se para todos eles! Em todo o caso, nem a espera antecipa a hora dos jogos, nem a expetativa interfere nos resultados, nem o desejo potencia as pernas dos jogadores ou apura as táticas dos treinadores. Por muito envolvente e angustiante que o momento possa ser para muitos portugueses e portuguesas, e de cujo resultado possam vir a sentir-se triunfantes ou humilhados, a preparação, os jogos e os resultados são-lhes exteriores, dependem de outras pessoas e circunstâncias. Serve a imagem para ilustrar que espera, expetativa, desejo e utopia existem e arrastam-nos, mas não são esperança!

    Esperança, isso, uma palavra que parecia morta e que a crise ressuscitou. Curiosamente, uma das três únicas encíclicas de Bento XVI foi sobre a esperança. Mas estávamos ainda em 2007 e nem o Papa sonhava a crise tal como ela se manifestou depois, nem a cultura dominante estava virada para um conceito que, então, parecia excessivamente religioso. O texto passou ao lado, incontundente e incólume.

    Hoje, pelo contrário, não há quem não pergunte: “e ainda há esperança?”. E os políticos, à uma, apelam à esperança ou oferecem-se a eles próprios como garantia da mesma. Mas também aqui o discurso tende a confundir esperança, esperas, utopias, desejos e expetativas. A sociedade portuguesa – se as aparências não enganam – tem muitas pessoas à espera das decisões da Srª Merkel, do BCE, do Governo, muitas pessoas na expetativa de que a sua empresa não encerre, muitas pessoas desejosas de uma mudança dos atores políticos, e por aí fora… Mas nada disso se situa no domínio da esperança.

    A esperança vive da certeza de que é possível e desejável uma realidade diferente. Certeza que é interior, mas que é mais do que convicção, porque radicada no anseio universal por um bem maior pessoal e coletivo. Vive do futuro, mas trabalha ativamente o presente para o orientar no sentido desse futuro. É pró-ativa, como – noutro contexto – o versejou Geraldo Vandré: “quem sabe faz a hora, não espera acontecer”. É projetiva, prosseguindo alguma utopia, mas não descola da realidade. E, mais do que tudo isto, é implicativa: mete-me a mim, pessoalmente, no seu caminho. A mim e a todos. Às pessoas e às organizações. Por isso, não há esperança sem mudança de critérios de vida, pessoais, coletivos e organizacionais, como o sugeria logo no título a primeira Nota da Comissão Diocesana Justiça e Paz da diocese de Coimbra (Junho, 2010). A esperança é o motor da História: quem quer ser senhor da História, e não apenas a vítima de esperas angustiantes e expetativas frustradas, alimenta-se e vive da esperança. Implicadamente.

    Carlos Neves

    domingo, 12 de maio de 2013

    O trabalho, um bem a partilhar


    Diário de Coimbra, 12.Mai.2013

    Não seria necessário esperar pelo mês de Maio, para que o trabalho fosse um tema irrenunciável. Na verdade, vivemos um tempo cujo principal drama é o desemprego. Impõe-se um debate sério sobre o trabalho, pois o modo como ele é entendido influencia a legislação laboral e a tomada de consciência da obrigatoriedade de atacar este problema dados os seus reflexos na vida pessoal – do sentido da inutilidade até à própria exclusão social –, familiar e social – das tensões sociais ao empobrecimento nacional. É indispensável que dadores de trabalho e trabalhadores, a sociedade, todos os cidadãos, aprofundem este tema de modo criativo, porque “em muitos casos, os pobres são o resultado da violação da dignidade do trabalho humano, seja porque as suas possibilidades são limitadas (desemprego, subemprego), seja porque são desvalorizados «os direitos que dele brotam, especialmente o direito ao justo salário, à segurança da pessoa do trabalhador e da sua família»” (Bento XVI, Caritas in Veritate, 63).

    Efectivamente, de acordo com a doutrina social da Igreja, o trabalho é o meio pelo qual cada pessoa se pode realizar. É pelo trabalho que cada um se pode sustentar a si e à sua família. A própria vida familiar depende do trabalho, pois este “constitui o fundamento sobre o qual se edifica a vida familiar, direito fundamental e vocação do homem” (João Paulo II, Laborem Exercens (LE), 10). O trabalho assegura também o desenvolvimento da sociedade, promovendo a solidariedade entre as pessoas – colegas trabalhadores e cidadãos consumidores – e respondendo às necessidades pessoais e da humanidade. É um instrumento para realizar o adequado “domínio” sobre a natureza, sem o qual não há progresso nem desenvolvimento. Mas sobretudo, o trabalho é o meio mais adequado para que cada um possa ter a sua parte dos bens da terra que existem para a utilização de todos: enquanto a esmola é um gesto, muitas vezes degradante, e os subsídios são transitórios, o trabalho é o meio mais nobre e dignificante para ter acesso a estes bens, pois, pelo trabalho, cada um dá o seu contributo para os aumentar e recebe, através de um salário justo, a parte a que tem direito.

    Por tudo isto há uma hierarquia de valores: o primado do homem sobre o trabalho – a pessoa deve estar sempre no centro de toda actividade incluindo a actividade laboral: “Antes de mais nada, o trabalho é ‘para o homem’ e não o homem ‘para o trabalho’”. Daí que seja a pessoa quem dá dignidade a todos os tipos de trabalho e não vice-versa. Daí que “a finalidade de todo e qualquer trabalho realizado pelo homem permanece sempre o próprio homem” (LE 6) – e o primado do trabalho sobre o capital: “Esse instrumento gigantesco e poderoso, que é o conjunto dos meios de produção, considerados como sinónimo do capital, nasceu do trabalho e é portador dos vestígios de trabalho humano” (LE 12). Por isso o trabalho é cronológica e ontologicamente anterior ao capital.

    É exactamente o contrário daquilo a que assistimos nas sociedades modernas. Mas tirar a pessoa do centro para lá colocar o capital é recusar a centralidade da pessoa, é recusar o pilar estruturante de uma sociedade ou de um sistema justo, solidário e humano. Hoje, há pessoas que são obrigadas a trabalhar estupidamente sem tempo para mais nada, enquanto outras, cada vez mais, não têm trabalho, vivendo a angústia da inutilidade e da falta de auto-estima. Não será possível, dado o enorme aumento de produtividade – trinta vezes desde a Revolução Industrial – fazer uma redistribuição solidária do trabalho de modo a diminuir drasticamente o desemprego? Atrevia-me a recordar aqui a velha proposta “a meio tempo” do sociólogo G. Aznar, que implicava: 1) dispor de duas pessoas, no mesmo posto de trabalho, por cada dia completo; 2) ter dois tempos para a mesma pessoa: um, consagrado a um tipo de actividade, na esfera profissional; outro, “um tempo para amar”, consagrado a outras actividades, na esfera individual ou social, como cuidar dos filhos, actualizar conhecimentos, cumprir um “serviço cívico” que seria extensível a todos, etc.. Os custos desta proposta deviam ser repartidos pela empresa, remunerando o trabalho realizado, e pelo Estado, através de compensações fiscais ou afins às empresas que adiram, mas também repondo um salário digno ao trabalhador. Bem sei que isto é utópico, que exige uma profunda mudança de mentalidades, da organização social e do próprio conceito de trabalho. Por exemplo, é altura de ultrapassar ideias como a de que o homem é trabalhador porque trabalha numa fábrica e a mulher não é trabalhadora, porque “apenas” se dedica a cuidar dos filhos e da gestão da casa.

    Se o próximo paradigma de organização social e sua fundamentação não tiver nada de utópico é porque não passámos além do que temos, embora com outras roupagens.

    José Dias da Silva

    domingo, 5 de maio de 2013

    Ler "Pacem in Terris" 50 anos mais tarde...


    Diário de Coimbra, 5.mai.2013

    Olhamos, hoje, para a crise económica, para os conflitos sociais e políticos que se desenham na Europa e no nosso País e pensamos: como foi possível considerar, em 1962, a ascensão económico-social das classes trabalhadoras, o ingresso da mulher na vida pública e, ainda, a evolução sociedade humana para um padrão social e político completamente novo, sem povos dominadores ou dominados, como os fenómenos mais marcantes daquela época? (PT, 39-45)

    Será que recuámos no tempo? Ou estaríamos, então, imersos naquele otimismo – hoje em dia classificado, por muitos, de ingénuo – típico dos anos sessenta?

    Há 50 anos acreditávamos que, depois de alcançados os direitos de natureza económica, social, cultural e política, os trabalhadores saberiam manter viva «a exigência de não serem tratados pelos outros, arbitrariamente, como objetos que carecem de razão e de liberdade, mas sim como pessoas». Estávamos, também, convencidos de que cada mulher, consciente da sua própria dignidade, conseguiria reivindicar a «paridade de direito e de facto com os homens» (GS, 9). E, finalmente, afirmávamos que estavam «superadas seculares mentalidades que admitiam classes inferiores e superiores de pessoas, fruto da situação económico-social, do sexo ou da posição política, prevalecendo a opinião de que todos os seres humanos são iguais entre si por dignidade de natureza.»

    Onde teremos, assim, errado? A excessiva confiança no progresso tecnológico, ou a filosofia de bem-estar baseada exclusivamente no consumismo serão justificação suficiente para o nosso fracasso?

    Recordo que a encíclica “Pacem in Terris”, publicada em maio de 1962, versa sobre «a paz de todos os povos na base da verdade, justiça, caridade e liberdade» e assume-se como um desafio universal, dirigido não apenas aos católicos e aos cristãos, mas a todas as pessoas (homens e mulheres) de boa vontade. À semelhança, aliás, do que acontece com outros, mais recentes, como a Declaração do Milénio”, na qual foram definidos oito objetivos, sendo um deles, releve-se, «promover a igualdade de género», tema que, hoje, Dia da Mãe, não posso deixar de associar à maternidade.

    Neste sentido, proponho a leitura de mais um excerto, agora da encíclica Laborem Exercens (LC, 19). Falo de um texto de 1980 (ano em que fui mãe pela segunda vez), onde se sublinha que «a experiência confirma que é necessário atender mais à revalorização social das funções maternas», se reitera a necessidade de criar condições para que todas as mulheres «possam desempenhar plenamente as suas funções… sem discriminações e sem exclusão dos empregos para que tenham capacidade, como também sem faltar ao respeito pelas suas aspirações familiares e pelo papel específico que lhes cabe no contribuir para o bem comum da sociedade juntamente com o homem», e, ainda, se frisa que «a verdadeira promoção da mulher exige que o trabalho seja estruturado de tal maneira que ela não se veja obrigada a pagar a própria promoção com o ter de abandonar a sua especificidade e com detrimento da sua família, na qual, ela, como mãe, tem um papel insubstituível.».

    Dizia-me a minha Mãe, também há 50 anos atrás, que, com a evolução dos tempos e mentalidades, esperava que as filhas sentissem menos dificuldades em conciliar a vida familiar e profissional do que as que ela experimentava. Mais tarde, já avó, lamentava que tal não tivesse acontecido.

    E nos dias que correm? Teremos já ultrapassado algumas destas barreiras? Ignorar os avanços entretanto obtidos parece-me uma lamentável injustiça. Todavia, todos os anos, no Dia da Mãe, procuro refletir na imensidão do que ainda está por fazer e, sobretudo, perceber que preconceitos e rotinas me impedem de melhor contribuir para que todos, mães, pais, filhos e filhas, vivamos mais felizes.

    Teresa Pedroso de Lima

    Sim, nós podemos!

    Diário de Coimbra, 29.dez.2013 Temos a noção de que atravessamos tempos únicos em que os desafios intranquilos duma nova era da Civil...